As instituições surgiram como efeito dos ideais de uma época, assim como a instituição prisional, e se fundamenta segunda uma lógica: controle de condutas e manutenção da vigilância, um lugar de reeducação e uma posterior reintegração social. Foucault¹ nos diz que a sociedade é quem define o que é crime de acordo com os próprios interesses. O que então seria de interesse social taxar como crime e ainda, qual forma de punir aquele que cometeu esse ato?
Toda sociedade, cito Lacan² “manifesta a relação do crime com a lei através de castigos cujo a realização, sejam quais forem suas modalidades, exige um assentimento subjetivo”, assentimento subjetivo, pois ele mesmo é o executor da punição que a lei o dispôs pelo seu crime e para que haja a própria significação da punição. Dessa forma, as suas crenças mediante essa punição se motiva no sujeito, as instituições pelas quais ela passa ao ato, permite definir o que nomeamos como responsabilidade.
Segundo Lacan³, a responsabilidade, isto é, o castigo, é uma característica essencial da ideia do homem que prevalece dada uma sociedade. A punição define a responsabilidade ao passo que é necessário que para a aceitação da punição é necessário aceitar essa lei como verdade e a se responsabilizar pelo seu ato. Cada sujeito responde a essa lei de uma maneira sendo necessário “libertar a verdade do ato, comprometendo com ele a responsabilidade do criminoso, através de uma assunção lógica, que deverá conduzi-lo à aceitação de um justo castigo”4. Dessa forma, possibilita-se a externalização da culpa do sujeito e a possibilidade de assumir a responsabilidade pelo seu ato, e que seja em relação à vítima, à sociedade e consigo mesmo. Isto é diferente do pagamento da dívida com o Estado, ou ainda, o apagamento de sua responsabilidade em relação ao seu ato, pois não se vê os efeitos desse ato para além da duração do cumprimento da pena.
Contudo, esse sujeito, é fruto do mal-estar de se viver em civilização. Freud5 já nos dizia que para se viver em comunidade era preciso perder parte do seu gozo, renúncias imediatas e mais intensas, para que a sua vivência não fique amparada apenas em si próprio, mas também em relação aos outros. Sabe-se que a relação humana, uma das três fontes de nosso sofrer, também é a nossa salvação, uma vez que pelo medo da perda do amor, pela necessidade de reconhecimento e de trocas, nos relacionamos uns com os outros.
Freud⁶ também nos aponta que todo sujeito possui uma pulsão agressiva inerente, e que a civilização conseguiria regulamentar as tendências agressivas pelo sentimento de culpa. Ainda sobre a culpa, ela pode ser percebida como um “mal-estar, uma insatisfação, para a qual as pessoas buscam outras motivações". Essa pulsão agressiva produz efeitos na relação com os outros, por isso é necessário que a civilização estabeleça limites para tal e manter suas manifestações sob controle e que garanta a continuidade do processo civilizatório. o assassinato do pai é o fundamento da sociedade, que dá origem a uma organização. Logo, isto quer dizer que para Freud a possibilidade do criminoso está presente em cada um de nós. É necessário, por conseguinte, a normatividade edipiana, de alguma maneira, que canalize ou que apague o criminoso em nós.
Existe então uma exigência para o sujeito renuncie às suas satisfações imediatas. Assim, o gozo encontra regulamentação nas normas jurídicas, assim como na prisão e em outras instituições. Na interdição se introduz a falta que funda o desejo e limita o gozo. Entretanto, essa exigência social custa muito, ela não vem sem um preço: existem dejetos que caem de um ideal que se tenta conciliar, será então que a civilização obtém êxito na sua proposta? Já nos dizia Freud7: "a lei não é capaz de deitar a mão sobre as manifestações mais cautelosas e refinadas da agressividade humana".
Tentamos tratar a dor de de existir, pois se força uma maneira de vida que pode ser fruto de grande desamparo social. O crime responderia a um contexto social? Não seria então o crime como uma resposta negativa do sujeito a essa civilização? Por uma falta de meios para simbolizar sua angústia passando ao ato?
O ato é “gesto dirigido ao outro”8, precede o sujeito, desde o primeiro grito humano. O ato que destrói possui um desfecho trágico, vinculado a pulsão de morte, marca uma ruptura com o Outro e a identidade com o objeto a, esse que é dejeto . Não se é possível simbolizar o que se vive, não há palavra, apenas pulsão e ato. A dimensão do Real adquire consistência, incidindo sobre o simbólico, ofuscando-o; o nó se estreita, contraindo-se o simbólico e o imaginário9. É nesse momento que o aparato jurídico não desempenha seu papel regulatório e há barbaridades em decorrência de suas limitações e a forma que a civilização lida com essa resposta do sujeito é, segundo Freud10, “enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele". O agente do sentimento de culpa e a necessidade de punição, nomeado o que é bem e mal.
Fernanda Otoni11 nos diz que a prisão, assim como toda instituição, deveria existir a partir de uma falha e ser vazia em si mesma. De forma que, é o sujeito que pressupõe o seu desejo e é nessa falha que ele se depara com um modo de se alojar e de se encontrar. O sujeito irá, de um modo único, colocar seus significantes nesse vazio e não será enquadrado, pois não existe um perfil único, mas uma ética do desejo. O desejo de cada um, a sua singularidade como ser pessoa, os seus significantes. Contudo, a instituição prisional possui um enquadre, uma normal, da qual o sujeito precisa se alojar, caber nesse espaço delimitado, delimitando assim a sua subjetividade.
Já nos dizia Lacan12 que a força do desejo é suficiente para desenlaçar a tragédia (morte) e, paradoxalmente, possibilitar uma nova ordem (vida). O sujeito responde ao seu desejo, é responsável por ele, que quando em ato solidificado, encontra-se distante da palavra e se torna estranho a ele e indomável. A palavra nomeia o ato, de forma que sendo sujeitos da linguagem, é preciso se utilizar dela em função de reparar o ato, de fonte inesgotável, pulsional.
Legisladores acreditam que o crime é a causa da instabilidade social e não o seu efeito, interpretando a agressividade como uma irregularidade e não como condição inerente ao humano. Isso não é uma condição de periculosidade, mas da civilização. Podemos ver essa agressividade na relação do sujeito com seu semelhante, que tendemos a ter uma relação na tentativa de uma dominação a uma em que o próximo é aquele que se pode amar.
A instituição prisional visa a correção e a ressocialização do condenado, contudo, ela tira a sua singularidade, aniquilando suas especificidades para transformá-lo em uma criatura branda e esquecem-se do que é natural. Ele é nomeado, segundo Foucault13 como delinquente, em oposição do reconhecimento como sujeito, cidadão. Esse mesmo autor nos diz como o sistema prisional funciona como uma fábrica de delinquentes, sendo a mesma instituição que objetiva a ressocialização, ou ainda uma nova normatização. O sujeito é treinado como em um sistemas de recompensas e punições, é modulado, como se isso desse conta da sua singularidade. Podemos dizer que há um aniquilamento do sujeito, de suas particularidades, morte de seus desejos, limites, muitas vezes da sua dignidade, morte da humanidade enclausurada.
Se o dispositivo da instituição prisional fracassa em seu objetivo, porque ainda ele é o principal meio de punição social? Se existe essa contradição em sua proposta e o que de fato se apresenta, Foucault14 nos aponta uma resposta para a manutenção das relações de poder. O interior e exterior estão determinados, cada qual em seu lugar, a liberdade e o enclausuramento e essa instituição funciona de forma que esses lugares permaneçam dessa forma. Para além da contenção das grades e do privamento de sua liberdade, existe a contenção do lugar simbólico de delinquente construído e que esse sujeito passa a se reconhecer e a se nomear.
Dessa forma, podemos pensar na possibilidades de flexibilidade frente à rigidez dos imperativos dos discursos institucionais a partir da ética da Psicanálise, servindo das brechas desse sistema para promover o deslocamento e uma possível (cri)ação. Talvez a ação da justiça sobre o condenado possa ter efeitos de remanejamento subjetivo, isto é, que “pudesse dar-lhe o sentimento après-coup, só-depois, de uma certa responsabilidade, e caberia eventualmente ao psicanalista fazê-lo reencontrar este sentimento15.”
A Psicanálise visa não a verdade do crime em sua face policial, na busca da verdade na ordem judiciária, mas a verdade condenado em sua face antropológica, visa no reconhecimento de si e do outro enquanto condição humana, sujeito e não abjetos. Lacan16 nos diz que “a ação concreta da psicanálise é de benefício numa ordem rija. As significações que ele revela no sujeito culpado não o excluem da comunidade humana. Ela possibilita um tratamento em que o sujeito não fica alienado em si mesmo. A responsabilidade por ela restaurada nele corresponde à esperança, que palpita em todo o ser condenado, de se integrar em um sentido vivido.”
Finalizo com a seguinte questão: poderíamos reconhecer um caso de invenção diante dos engessamentos que vivemos? O que corresponderia desrealizar o crime sem desumanizar o criminoso?
Essas estrtuturas, nas quais a assimilação social do indivíduo, levada ao extremo, mostra sua correlação com uma tensão agressiva cuja relativa impunidade no Estado é muito perceptível para um sujeito de uma cultura diferente, aparecem advertidas quando, segundo um processo formal já descrito por Platão, a tirania sucede a democracia e efetua com os indivíduos, reduzindo o seu número ordinal, o at cardinal de adição, prontamente seguido pelas outras tres operacoes fundamentais de aritimetica.
é possível questionar o tabu do sistema prisional que separa bem e mal, e a relação com uma lei que ao mesmo tempo limita nossa satisfação e nos protege da satisfação do outro.
Se estar na cultura impõe restrições de satisfação, não há como não ter um movimento de hostilidade contra aquele que, no momento, for o agente da restrição.las não são resultados do vicioso e terrível ambiente prisional, mas próprias do ser humano e seu agrupamento
Sendo assim, buscam-se aproximações acerca da diferença ressaltada pelo sujeito que opta pela via da transgressão criminosa e se faz reconhecido pelo registro da delinqüência. Aliás, Rassial (1994) chama a atenção para o forte valor simbólico desse significante. Palavra que vem do latim, delinquere. Linquere é deixar algo, ou alguém, no seu lugar, e o de marca a separação, o destacamento. O delinqüente é – contra a natureza própria das coisas, de retornar ao seu lugar (Aristóteles) – aquele que desaloja: que desaloja as coisas, que se desaloja de seu lugar, do lugar que lhe é atribuído pela sociedade(p.51).
Mas, como tratar daquele que se constitui nos mesmos parâmetros de normatividade que norteiam a vida racionalmente vivida e que, entretanto, burla as regras de convivência, rompendo com toda a estabilidade social e desvirtua todos os caminhos que confluem para o bem comum? Faz isso e, no entanto, não o faz sem sabê-lo. Simplesmente goza por fazê-lo
Que tipo de subjetivação é possível, se a demanda pela Lei já se dá, provavelmente, como um pedido, como uma linguagem cifrada (sintoma) que se dirige a um outro que lhe possibilite desejar, atuar de algum modo na sociedade?
Nessa perspectiva, a estruturação penitenciária funcionaria muito menos como um projeto de ressignificação de vidas do que um mecanismo radical de controle social, como já salientava Foucault (1987). E o sujeito implicado nessa lógica estaria mais em vias de um (des)sujeitamento do que mesmo de uma reestruturação
Disso tudo parte a necessidade de se pensar na importância de que, inicialmente, se inscreva para o sujeito essa dimensão real de igualdade entre o si mesmo e o outro, enquanto condição humana, para que, a partir daí, se torne viável a construção de um espaço de trocas entre as diferenças
Nesse sentido, como seria possível elaborar uma ressignificação subjetiva se essa condição primeira de estruturação, que é a dimensão da identificação, do igualamento e do reconhecimento do outro e através do outro (a dimensão estruturante do espelhamento) é negada? Pois, nessa lógica, o sujeito é, o tempo todo, identificado e reconhecido pelo olhar social como um de fora. Assim, como o próprio signo que nomeia o sistema prisional já diz, constitui um lugar de penitências por aquilo que se é – transgressor da norma, diferente, delinqüente e supérfluo. Como se reinserir no corpo social a partir de uma perspectiva excludente por excelência? Porventura, não seria o ideal de um sujeito centrado em si mesmo o grande provocador dessa exclusão
Para que o sujeito se constitua como tal, é necessário que, antes de tudo, o outro lhe dirija a palavra, lhe invista, o nomeie, o reconheça e lhe atribua um lugar, um sentido enquanto possibilidade.
Mas, segundo Goffman (1961), o internamento naquele tipo de estabelecimento que enclausura para disciplinar se dá de modo que o homem internado passe por um processo através do qual perde sua dimensão de individualidade e de sujeito. Ocorre, então, o que o autor chamou de mortificação do eu. Essas instituições são, pois, segundo o autor, as estufas para mudar pessoas; cada um é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu (p.22)
Ao contrário, pois, do que deveria ser esperado dessas instituições, uma série de elementos negativos são introduzidos perante aquilo que se conseguiu ser, ao mesmo tempo em que a única opção se faz no sentido de subordinação, de dependência e de humilhação, o que torna inviável transformar a falta radical de todo ser humano em produção social. Em outras palavras, nada acontece de modo a mostrar ao indivíduo que vale a pena o adiamento do seu próprio prazer para a convivência, para as trocas permeadas por uma Lei mediadora. Nada o impele para uma autonomia social viável.
Isso implica, pois, no sujeito como uma realidade autônoma, na medida em que desprende-se de uma radical alienação no outro, para se jogar na dimensão da liberdade e, portanto, no mundo de trocas, perdas e ganhos que toda e qualquer opção requer. Nesse caso, a submissão se daria direcionada ao Código, mas um Código que assegurasse a possibilidade de escolhas viáveis socialment
Coloca-se a Lei maior da sociedade entre parênteses (pois ela não assegura a possibilidade de ser e atuar enquanto gente que escolhe, sente, ganha e perde) para que se faça valer uma norma outra que assegure um nível de atuação, na maioria das vezes radical, para esses indivíduos. Por mais
desejo primitivo de aniquilamento do outro pela diferença que este suscita e pela ilusória onipotência de alguns, que tantas vezes encontra respaldo radical no dinheiro e no exercício de poder sobre os outr
Mas, na verdade, o que mais deixa entrever esse tipo de lógica e de tratamento é a revelação de uma cultura que ainda não formulou estratégias de conciliação das diferenças entre os sujeitos que a compõem. E essa falta de estratégias que somente a cultura pode engendrar é o que acaba por fazer da instituição prisional e penitenciária um puro exílio, onde se dá a crispação do corpo e da alma do aprisionado, de modo que, mesmo depois, ao se deparar com o mundo exterior, não lhe seja mais possível desejar e produzir a não ser pelo registro do aniquilamento do outro, na medida em que o selo da incompetência, da maldade e do enclausuramento em si mesmo foi-lhe, de uma vez por todas, destinado. Pergunta-se, então: o ideal cartesiano tem dado conta do sujeito e de suas vicissitudes enquanto ser humano?
uma Lei que traga a possibilidade de trocas em meio às vicissitudes do humano.
Daí o delinqüente atuar através da via de busca pela completude a todo custo, inclusive a custo de si mesmo e do outro, numa realidade produzida pela desmoralização e falência dos ideais expressa pela decadência moral da sociedade.
Biografia:
¹FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel. Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2004.
²LACAN, J. Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. In: . Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.
³_________. Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia. In: . Outros escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003.
4Ibid, p.128.
5FREUD, S. Obras completas. Ed. standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1972. V. 21. O mal-estar na civilização.
⁶FREUD, S. Obras completas. Ed. standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1972. V. 21. O mal-estar na civilização, p.160.
7Ibid. p.134.
8BARBOSA NETO, Esperidião; PASSOS, Maria Consuêlo. Preso pelo ato, condenado à palavra: um olhar psicanalítico. Estud. psicanal., Belo Horizonte, 2014 .
9LACAN, J. O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação (1958-1959). Porto Alegre: APPOA, 2002.
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